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A Indumentária como Identificador Social – Um Estudo no Teatro Grego

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Bom, como alguns de vocês já devem saber, sou historiadora por formação. Me especializei em História Antiga Grega e estou no doutorado estudando as práticas de vestir dos gregos, especialmente dos atenienses.

Existem muitas formas de vocês pesquisar esse tema na Antiguidade: documentação textual, imagética, cultura material... Para o post de hoje eu escolhi colocar uma parte de uma comunicação que eu apresentei na UERJ no ano passado, onde eu busquei trabalhar justamente esse objeto do ponto de vista do teatro grego antigo. Vamos estudar um pouco sobre a indumentária grega Clássica e seus sentidos?

Eu acredito que o ato de vestir-se é um fenômeno social, imerso em diversos contextos, como histórico, social e cultural. Utilizo-me dos textos trágicos como subsidio documental, de forma a perceber como a vestimenta ajudava na identificação do status social da personagem, e assim, entender o próprio estatuto da roupa Atenas Clássica.

Embora muitas vezes tratada como escolha eventual, fruto de livre-arbítrio daquele que a usa, a vestimenta, na verdade, está inserida numa série de prerrogativas que a acompanham. Neste sentido, a vestimenta passa de um mero dado prático cotidiano, ganhando importância fundamental para entendermos os valores e a construção de identidades e status de qualquer sociedade. Partimos da premissa de que o ato de vestir-se é um fenômeno social, inserido dentro de um contexto histórico. Este contexto é afetado por fatores políticos, culturais e econômicos, e está diretamente relacionado à produção intelectual, estética e ideológica desta sociedade, sendo permeada pelos valores sociais vigentes, identificando os sujeitos em suas subjetividades e coletividades, gerando sentido.

Deve-se observar que não é somente a roupa que vai definir quem é o indivíduo no interior de um grupo ou caracterizar uma posição social; o que também contribuirá para sua aceitação e posicionamento é o movimento que se faz "dentro" das roupas. Nesse sentido, o ato de vestir-se deixa de ser um somente uma necessidade humana e passa a ser fenômeno social e histórico. As roupas, ornamentos e acessórios que observamos constituem e são constituídos por valores sociais vigentes, que irão identificar os agentes. Ela é mais que uma junção de tecidos e materiais, é geradora de sentido, é linguagem, expressão.

Atualmente, muito do que sabemos sobre os “usos” das roupas na Antiguidade vem de pinturas em vasos e em paredes, bem como da estátuária. Ao contrário das jóias, que tendem a durar por um bom tempo, por serem feitas de materiais inorgânicos, poucos indumentos foram preservados. As cores que peças de roupa e estátuas apresentavam, ao longo do tempo, foram desgastando-se, dando uma aparência branca ou amarelada para tais itens, o que acabou por influenciar toda uma tradição arqueológica e historiográfica sobre o mito dos helenos só usarem roupas claras. Contudo, com o aperfeiçoamento das técnicas arqueológicas, sabe-se que a indumentária grega era muito mais rica em termos de estamparias, cores, bordados e tecidos, o que revela o refinamento e riqueza.

Entender o vestir-se como um ato social e observar os sentidos e os comportamentos esperados pelos indivíduos em função da roupa que vestem pressupõe considerar que suas práticas são baseadas em expectativas que estão além de suas vontades imediatas. Há uma série de mecanismos que aludem a necessidade de adequação dos agentes às ações esperadas pelo grupo social no qual se insere. Percebemos discursos sociais que apontam a necessidade de ajustamento das condutas ao comportamento julgado adequado em total conformidade com a roupa que trajam. Neste sentido, acreditamos que o conceito habitus de Pierre Bourdieu, está em total acordo com nossa premissa.

A noção de habitus é, deste modo, orientada para o senso prático, para ação social levada a cabo como atitudes incorporadas e não necessariamente refletidas na efetivação da ação. Ela associa agentes sociais e sociedade, visto que a sociedade é parte constitutiva do que o agente é, através da introspecção de valores que o caracterizam e definem (BOURDIEU, 1996, p. 42). O habitus, apesar orientar os comportamentos do agente a partir de um senso prático, não determina as escolhas, mesmo que estas sejam feitas a partir de uma quantidade de variáveis habitualmente admitidas pelo contexto histórico vigente (BOURDIEU, 1992, p. 88-89). O habitus é responsável pelas práticas objetivamente classificáveis, sem deixar de ser um sistema de classificação. 

A vestimenta e seus sentidos, na Antiguidade Ateniense Clássica, podem ser perfeitamente inseridas na noção de habitus:

1) A vestimenta está sujeita às alocações e deslocamentos oriundos da mudança, que conduzem à revisão dos comportamentos e sentidos gerados por ela no senso prático;
2) Permitem compreender a exterioridade interiorizada dos indivíduos, na medida em que os comportamentos são justificados pelas concepções vigentes na sociedade e que os indivíduos assumem e refletem no momento que trajam determinado indumento;
3) Oferecem espaço para pensar as variáveis que incidem sobre a roupa e que tornam os agentes particulares, como gênero, etnia, status social e recursos financeiros.

Um das documentações mais profícuas para o estudo da roupa e seu sentido social é a documentação textual, em especial a teatral. Nele, poderemos entender como a vestimenta obedece a lógica apontada por Bourdieu com relação ao habitus. 

O teatro era o espaço do tudo dizer. Exercício cívico da religiosidade, celebração da koinonía, dos valores políades e da exibição pública. Através das personagens, autores cômicos e trágicos recontavam mitos atualizando-os, educavam a platéia, colocavam questões pertinentes a pólis (a Cidade-Estado grega, a grosso modo) em debate e celebravam uma unidade permeada por muitos diversos – o cidadão, o estrangeiro, o escravo, os deuses - em suas vicissitudes, tramas e contradições, que formavam a pólis em sua essência.
      

Por se tratar do espelho mais próximo da própria pólis, era natural que as práticas encenadas, o tratamento entre as personagens e mesmo sua indumentária fosse próxima a do cotidiano. Isso porque, mesmo que aceitemos que a indumentária teatral possuísse suas próprias modelagens e apresentações com a finalidade do espetáculo, elas partiam de um dado primordial – a roupa usada pelas pessoas em seu cotidiano. 

Assim, devemos ter em mente que se temos um sacerdote em cena, ele deveria estar trajado com signos que remetam ao espectador a sua identidade. Um desses signos é seu indumento, aliado a máscara e a cenografia, situando a platéia em sua identidade. Também entendemos que a indumentária trajada pelas personagens não refletem a forma de vestir dos helenos, mas acreditamos que a partir dos elementos que são relacionados a essa vestimenta seria possível investigar como a sociedade grega se vestia e que sentidos atribuía a suas roupas. 

Nesse sentido, as tragédias e as comédias nos apresentam grandes testemunhos de como a indumentária era usada para identificação dos grupos e do status social das personagens. 

Passemos as tragédias. Na tragédia Filoctetes, de Sófocles, a personagem homônima ao avistar Neoptólemo, reconhece se tratar de um heleno pelas suas vestes:

             Filoctetes:
             Quem sois? O estilo de vestuário evoca
             Em mim a Hélade adorável!

             (SÓFOCLES. Filoctetes. vv.223-224)

            Na mesma tragédia, temos outra alusão a vestimenta, quando o herói Odisseu avisa a Neoptólemo que, caso demorasse, enviaria um homem disfarçado de mercante falar com o filho de Aquiles para passar algumas informações e buscar outras:

Odisseu:
Se tardares demais, é ele quem
Virá em vestes de mercante a fim
De aproximar-se livre de suspeitas
(SÓFOCLES. Filoctetes. vv.126-128)

            Na tragédia As Troianas, de Eurípides, é na fala de Hécuba, direcionada a Helena, que encontramos uma referência sobre a riqueza da casa troiana justamente pela roupa trajada por Páris:

Hécuba:
A imagem de meu filho em sua roupa exótica
Bordada de ouro fulgurante,
Transtornou-te a alma (...)
(EURÍPIDES. As Troianas. vv. 1261-1263)

            A esposa de Príamo descreve a roupa de seu filho com uma padronagem que reflete seu status social e sua riqueza; não é um bordado qualquer e sim um bordado com ouro. E desperta a atenção de Helena, segundo Hécuba: a qualidade do bordado demonstra a que camada social a personagem pertencia.

            Na mesma tragédia, Hécuba questiona a postura altiva de Helena frente ao destino das mulheres da casa troiana, mostrando que, mesmo em um momento de guerra, Helena não adotou hábitos comedidos e ignorando as circunstancias, adornava-se além da conta. Pior: para Hécuba, por Helena ser a causadora da contenda, deveria ser a que mais humildemente deveria se apresentar, incorrendo, exatamente, o contrário.

Hécuba:
Além disso, teu corpo adornas ao saíres e com teu marido olhas
para o mesmo céu, ó figura desprezível:
Era necessário humilde, em trapos de péplos,
De horror tremendo, de cabeça raspada
Vires, mas modéstia do que imprudência
(EURÍPIDES. Troianas. v.1023-1027)
Em Electra, do mesmo autor, temos outro exemplo da indumentária servindo como prova dos efeitos nefastos da guerra, aludindo a pobreza. É nas palavras da heroína homônima que tomamos ciência de sua situação:

Electra
Meu coração bate rápido infeliz, amigos, mas não a adorno ou ouro, nem vou criar refrões com as moças de Argos e bater meu pé nos labirintos da dança. Por lágrimas que eu passar a noite, as lágrimas são o meu dia infeliz. Veja se o meu cabelo sujo, e os trapos do meu vestido, estarão aptos para uma princesa, filha de Agamemnon, ou para Tróia, uma vez tomadas, que se lembra de meu pai.  (EURIPIDES. Electra. Vv. 175 -190)

Na Electra, de Sófocles temos mais indicativos da relação vestimenta e riqueza/status social. Electra, uma das personagens da peça oferece para que seja colocado no túmulo de seu pai seus cabelos maltratados como súplica e seu cinto que nada tem de luxuoso (SÓFOCLES. Electra. vv. 446-447). As referências sobre as roupas de Electra são relevantes:

sou  tratada  de  escrava  no  palácio,  uso  esta  vestimenta inconveniente e  tenho que assediar mesas que nada  têm para mim (...) Depois,  imaginai que  dias passo quando vejo Egisto sentado no  trono de meu pai, usando as mesmas vestimentas que ele (...)  (SÓFOCLES. Eléctra. vv. 192-193). 

Electra evoca a permissão de, enquanto filha de Agamemnon, vestir-se adequadamente. E da mesma forma, não suporta ver Egisto trajando-se antes como seu pai trajava-se, justamente por sua nova posição.

Em Alceste, de Eurípides, temos mais um exemplo. Na tragédia temos a informação sobre a utilização do preto em sinal de luto, quando o segundo Corifeu pergunta sobre que postura deve adotar frente a morte da esposa de Admeto:

Segundo Corifeu:
Devemos cortar os cabelos rentes?
E vestir os negros trajes de luto?
(EURIPIDES. Alceste. vv. 273-4)
As roupas e sua ligação com o feminino foram destacadas por Eurípides na tragédia Hipólito.  A citação ajuda-nos a estabelecer a relação vestimenta / gênero feminino / riqueza:

 Hipólito
Por sua vez, aquele que recebe em casa essa raça fatal, esmera-se em cobrir com adornos belos o ídolo indesejável, mas para ornamentá-la com lindos vestidos, aos poucos o infeliz vê os seus bens sumirem (EURIPIDES. Hipólito. vv. 669-673).
           
         Como será que na comédia? Em Aristófanes, temos indicações de como a vestimenta estava intimamente relacionada com a identificação de grupos, riqueza e status social. Na comédia As Vespas, o escravo de Filocleão, Xântias, está explanando ao público sobre a situação de seu senhor e da estranha doença que acomete o pai do senhor, Bdelicleão, sobre não poder ficar um só dia sem julgar. Em dado instante da fala do escravo, temos a seguinte afirmação:

A princípio este [Filocleão] empregou a brandura e pediu-lhe [a Bdelicleão] para não voltar a pôr o manto curto. (ARISTÓFANES. As Vespas. vv. 114-116)

O “manto curto” era próprio das pessoas do povo que compunham a maioria dos heliastas (cidadão que tinha assento em um tribunal ateniense que funcionava ao ar livre, logo ao nascer do sol).

É interessante notarmos como a vestimenta acaba por vincular naquele que a traja, comportamentos que são esperados. Na comédia Rãs, do mesmo autor, temos um exemplo fundamental. Dioniso e seu escravo Xântias estão prestes a entrar na casa de Perséfone e são recepcionados por uma criada, que pensa tratar-se de Héracles pelas roupas que Xântias trajava. A troca de roupas havia sido feita entre Xântias e Dioniso, desafiando o escravo quanto a sua bravura:

Dioniso:
Pois bem, já que és resoluto e destemido, faze meu papel: toma esta clava e a pele de leão, se de fato és valente. Eu te servirei de carregador. (ARISTÓFANES. As Rãs. vv. 495-497)

Versos depois, temos o coro a afirmar:

Coro:
Agora que novamente vestistes o disfarce que trazias, tens que mostrar-te corajoso, lançar olhares terríveis, a exemplo do deus, cujo papel representas. Se, porem fores surpreendido dizendo disparates, ou se deixares escapar alguma palavra pusilânime, será obrigado a retomar as bagagens. (ARISTÓFANES. As Rãs. vv. 590-597)

Esperava-se de Xântias que, por trajar-se como Héracles (usando a pele de Leão e a clava), ele se comportasse dentro das características do deus, quais sejam, a postura altiva, a bravura, a força e a gula.  Na mesma comédia, ainda temos o exemplo de como as vestimentas, quando não usadas da forma esperada, provocavam impressões diversas. Temos Dioniso e Xântias à porta da moradia de Héracles, para pedir informações de como chegar ao Hades. Ao ver a forma como Dioniso estava trajado, o herói não contém sua reação:

Héracles:
Não, não é possível, conter o riso, quando vejo uma pele de leão sobre um vestido de mulher! Que significa isso? Que relação há entre um coturno e uma clava? Por que terras andastes?  (ARISTÓFANES. As Rãs. vv. 45-49)

Assim, pudemos observar que nos distintos estilos de texto teatral, que as construções sociais acerca das vestimentas ajudavam a identificar e ratificar a proeminência, o status de um grupo, sua riqueza e/ou a sua identidade.

Presume-se, por conseguinte, que a vestimenta seria um mecanismo social que interiorizava tanto naquele que as usava quanto naqueles que viam os agentes usarem, sistemas de identificações e comportamentais.


Para saber mais – Bibliografia

Documentação Textual
ARISTÓFANES; EURÍPIDES. O Ciclope, As Rãs e As Vespas. Trad. Junito de Souza Brandão. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, s/d.
EURIPIDE. Théatre Complet. Trad. Marie Delcourt-Curves. Saint-Amand: Gallimard, 1991.
EURÍPIDES. Alceste. Trad. Bernadina de Souza Oliveira. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1979.
SÓFOCLES. Filoctetes.  Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2009.
SOPHOCLES. Tragédies: Théâtre complet: Les Trachiniennes, Antigone, Ajax, Oedipe Roi, Electre, Philoctète, Oedipe à Colone. Translated by Paul Mazon. Paris: Gallimard, 1994.

Bibliografia Específica
BAUDRILLARD, Jean.  A moda ou magia do código.  In: A troca simbólica e a morte. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
BOURDIEU, P. Questões Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996.
__________. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre; DELSAUT, Yvette. O costureiro e sua grife: contribuição para uma teoria da magia. In: BOURDIEU, Pierre. A Produção da Crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2004. p. 115-190.
BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. J. D. Réponses: Pour une anthropologie réflexive. Paris: Éditions du Seuil, 1992.
BROOKE, Iris. Costume in Greek Classic Drama. 1973.
CARDOSO, C. F. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus, 1997.
CECCHETTI, P. C.  Decorazione dei costumi nei vasi Attici a figure nere . De Luca Editore. 1971-1972.
JONES, Peter V.(org.). O Mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica  ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LESSA, Fábio de Souza. O Feminino em Atenas. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.
_____________.; BUSTAMENTE, Regina; THEML, Neyde. Olhares do Corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
SOUZA, Maria Angélica R. As Mãos que “Falam”: Mitos, Tecelagem e Bordados. In: Phoînix Laboratório de História Antiga. Ano 15, v.15, n. 2. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 202-215.

_____________. Tecendo Mensagens numa trama bem urdida: As Mulheres Atenienses. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005. (Dissertação de Mestrado)




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